Por Gabriela Cardoso Tiussi
Tema corriqueiro e que tem bastante repercussão nas operações aduaneiras é a representação fiscal para fins penais, que normalmente é encaminhada ao Ministério Público Federal – MPF após o encerramento de processo administrativo-fiscal que resulte na aplicação da pena de perdimento quando restar caracterizado, em tese, crime de contrabando, descaminho, falsidade material ou outro tipo contra a ordem tributária.
Apesar de corriqueiro, o tema gera dúvidas sobre os procedimentos e suas implicações práticas. Portanto, com este artigo buscamos esclarecer as hipóteses que ensejam a representação fiscal para fins penais, os procedimentos concernentes à sua tramitação e as questões polêmicas relacionadas a sua aplicação.
O artigo 83 da Lei 9.430/1996 determina que, quando verificados os crimes contra a ordem tributária previstos nos artigos 1º e 2º da Lei 8.137/1990, bem como os crimes contra a previdência social previstos nos artigos 168-A e 337-A do Decreto-Lei no 2.848/1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público a respectiva representação fiscal para fins penais.
Além dos referidos crimes, de acordo com o disposto no Decreto 2.730/1998 serão objeto de representação fiscal para fins penais também as condutas que resultarem na lavratura de auto de infração decorrentes de apreensão de bens sujeitos à pena de perdimento que configurem, em tese, crime de contrabando ou descaminho.
Ainda de acordo com o Decreto 2.730/1998, o Auditor-Fiscal formalizará a representação fiscal em autos apartados e a protocolizará na mesma data da lavratura do auto de infração.
Encerrado o processo administrativo-fiscal, os autos serão remetidos ao Ministério Público se: mantida a imputação de multa agravada, o crédito de tributos e contribuições não for extinto pelo pagamento e/ou se aplicada, administrativamente, a pena de perdimento, restar configurado, em tese, crime de contrabando ou descaminho, sendo estas as hipótese que trataremos neste artigo.
No mesmo sentido dispõe o artigo 740 do Regulamento Aduaneiro (Decreto 6.759/2009), determinando que o Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil ao constatar crime contra a ordem tributária, crime de contrabando ou descaminho ou crimes em detrimento da Fazenda Nacional ou administração pública, deverá efetuar a respectiva representação fiscal para fins penais:
Art. 740. Sempre que o Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil constatar, no exercício de suas atribuições, fato que configure, em tese, crime contra a ordem tributária, crime de contrabando ou de descaminho, ou crimes em detrimento da Fazenda Nacional ou contra a administração pública federal, deverá efetuar a correspondente representação fiscal para fins penais, a ser encaminhada ao Ministério Público, na forma estabelecida pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.
Art. 741. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária será encaminhada ao Ministério Público após ter sido proferida a decisão final administrativa, no processo fiscal.
Parágrafo único. Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento.
Portanto, na prática, quando da ação fiscal resultar a lavratura de auto de infração para a aplicação da pena de perdimento, relacionado a fatos que configurem, em tese, crime de contrabando ou descaminho, será encaminhada a representação fiscal para fins penais ao MPF. Este, por sua vez, normalmente oficia tal fato à Polícia Federal para que seja instaurado o respectivo inquérito policial e, após concluída a fase investigativa, seja oferecida (ou não) a denúncia sobre o crime praticado.
Verifica-se que com tal conduta, a autoridade fiscal adentra ao campo penal para verificar se a conduta do administrado se caracteriza ou não como crime, sendo que tal formação do juízo da autoridade deve se basear fundamentalmente em provas materiais do delito.
Ocorre que não é incomum que o auditor fiscal da Receita Federal do Brasil considere como falsa a fatura comercial que contenha dados que, no seu entendimento, não condizem com a realidade da operação, o que pode caracterizar a falsidade documental. Ou ainda que o baixo preço de determinado produto seja tido como falsidade ideológica, por exemplo, sendo esta conduta precedente ao crime de descaminho.
Ademais, para que seja aplicada a penalidade fiscal máxima, relacionada ao perdimento de bens importados e que poderá incorrer também na lavratura da representação fiscal para fins penais, é necessário que da conduta que a ensejou resulte dano ao Erário, sendo que tal resultado não pode decorrer de mera presunção ou ficção legal – há que comprovar a existência de dolo.
Especialmente na esfera criminal, a conduta danosa está relacionada a análise da conduta do agente, pela qual será verificado se há ou não dolo ou má-fé, ou seja, a intenção de lesar os cofres públicos. Neste sentido, há decisões judiciais pelas quais se entende irrazoável a pena de perdimento quando ausente o elemento danoso:
ADMINISTRATIVO – PENA DE PERDIMENTO – ART. 23 DO DECRETO-LEI 1455⁄76 – DANO AO ERÁRIO INEXISTENTE – PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
A jurisprudência desta eg. Segunda Turma firmou o entendimento de que se deve flexibilizar a pena de perdimento de bens, quando ausente o elemento danoso.
Recurso Especial conhecido, mas improvido. (STJ, REsp 331.548, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, j. 16/02/2006).
ADMINISTRATIVO – PENA DE PERDIMENTO DE BENS – BOA FÉ DO PROPRIETÁRIO DA MERCADORIA – PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE.
1. O Direito pretoriano enquadra-se na posição de flexibilizar a pena de perdimento, quando ausente o elemento danoso.
2. Interpretação principiológica que se reporta à razoabilidade.
3. Recurso especial improvido.(STJ, REsp 512.517, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 01/09/2005).
Portanto, se não restar comprovada a existência de dano ao Erário, não deve ser imposta a penalidade de perdimento, que além da sanção em si, objetiva o ressarcimento ao Erário pelos danos causados.
Outro ponto polêmico está relacionado ao rito processual para a aplicação da penalidade de perdimento de bens.
Embora o entendimento jurisprudencial majoritário seja no sentido que a representação fiscal para fins penais deve ser encaminhada somente após decisão administrativa transitada em julgado na segunda instância administrativa, tal entendimento não se aplica ao rito processual do perdimento de bens . Isto porque apesar de se tratar da penalidade fiscal máxima, especificamente com relação ao perdimento de bens tal sanção é aplicada pela autoridade administrativa em instância única, suprimindo a apreciação em instância superior. Essa tramitação além de ferir o Principio do Duplo Grau de Jurisdição e Devido Processo Legal, dentre outros, possibilita que a mesma autoridade apreenda os bens, processe e julgue o processo fiscal e destine os bens para o perdimento, ao fim, lavrando ainda a respectiva representação fiscal para fins penais.
Além disso, a despeito do entendimento exposto na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.571/2004 , o entendimento jurisprudencial é no sentido de que os crimes de contrabando e descaminho não se tratam, em espécie, de crime contra a ordem tributária, podendo portanto ser encaminhada ao MPF a representação fiscal para fins penais após a decisão, em instância única, da autoridade administrativa.
Trata-se de exceção à regra que fere as garantias constitucionais do administrado e lhe nega o direito ao contraditório, ampla defesa e devido processo legal garantidos pela Constituição Federal.
Por fim, recentemente foi editada a Portaria 1.750/2018, que dispõe em seu artigo 16 que a Receita Federal do Brasil divulgará em seu sítio na internet lista com informações completas (incluindo nome e CPF/CNPJ) sobre as representações fiscais para fins penais encaminhadas ao MPF.
Ora, tal divulgação prescinde de qualquer condenação penal e sequer do próprio oferecimento de denúncia a respeito do cometimento de crime. Embora tal medida tenha sido justificada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil com base no Código Tributário Nacional, na Lei de Acesso à Informação e na transparência fiscal, tal medida nos parece irrazoável, além de se tratar de exposição danosa aos administrados e que soa como meio para constranger o administrado (e eventualmente meio coercitivo para arrecadação), sem que tenha sido iniciada a fase investigativa para a apuração de eventual crime, não sendo respeitada, portanto, a presunção de inocência.
Temos, portanto, que há diversos pontos questionáveis relacionados à aplicação da penalidade de perdimento, bem como à respectiva representação fiscal para fins penais que dela pode decorrer, sendo imprescindível a observância de tais requisitos para que seja devidamente convalidada a figura de eventual crime fiscal.
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