O voto de qualidade é aquele proferido pelo Presidente de uma das Turmas ou das Câmaras do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) nas hipóteses em que há empate de votos em julgamentos que se encontram em fase recursal na seara administrativa.
Apesar dessa sistemática de desempate existir há muito anos, tal voto sempre foi polêmico. Isso, pois o julgador responsável pelo voto de desempate é o Presidente do Órgão Colegiado que, por definição legal, é sempre um Conselheiro indicado pela Fazenda Nacional, que é parte obrigatória e necessária dessas demandas.
Após discussões de longa data, a “MP do Contribuinte Legal” (Medida Provisória nº 899/2019), que foi convertida na Lei nº 13.988/2020, cuja publicação se deu em 14/04/2020, incluiu disposição na Lei nº 10.522/02, que leva a crer que o voto de qualidade teria sido extinto.
Conforme o texto aprovado, que acresceu o artigo 19-E à mencionada lei, os julgamentos do CARF sobre “processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário” não aplicarão mais o voto de desempate pelo Presidente das Turmas ou Câmaras do órgão e, em caso de empate, a decisão será favorável ao contribuinte.
Eis o texto legal:
DAS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS
Art. 28. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 19-E:
“Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.” (g.n.)
Essa mudança trouxe diversas discussões jurídicas quanto à extensão do critério de desempate. Em teoria, a alteração legislativa estaria em consonância com o a redação do artigo 112 do Código Tributário Nacional, que assim dispõe: “a lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida (…)”.
Apesar de entendermos que a alteração beneficie aos contribuintes, é preciso destacar que o suposto “fim do voto de qualidade” já é alvo de questionamentos quanto a sua constitucionalidade, tanto formal quanto material, perante o Supremo Tribunal Federal, uma vez que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) ajuizaram Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs nº 6399, nº 6403 e nº 6.415) contra dispositivo da Lei nº 13.988/2020, que estão sob relatoria do Ministro Marco Aurélio.
Além disso, a disposição legal também está sendo questionada pelo Instituto de Defesa em Processo Administrativo (Indepad) através da Ação Civil Pública nº 1023961-69.2020.4.01.3400, ajuizada contra a União Federal, que está em trâmite perante à 17ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal.
As ações defendem que haveria ocorrido possível vício no processo legislativo que culminou na inclusão da disposição legal na Lei nº 10.522/02, em razão da inserção desta matéria em Medida Provisória que tratava de outro assunto – hipóteses de transação tributária com a União Federal -, bem como pelo fato de que tal matéria seria objeto de competência exclusiva do Presidente da República e, ainda, que a mudança implicaria na alteração da natureza do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, uma vez que os contribuintes passariam a ter poder decisório soberano em face da Administração Pública.
De outro lado, o Conselho Federal da OAB solicitou ao Superior Tribunal Federal o ingresso como “amicus curiae” na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.399, com a finalidade de defender o fim do voto de qualidade, uma vez que entende que o retorno à sistemática anterior à Lei nº 13.988/2020 seria prejudicial a todos os contribuintes brasileiros, que são obrigados a arcar com enorme ônus financeiro para manutenção de discussões judicias sobre débitos tributários e, ainda assim, correm risco constante de constrições forçadas de seu patrimônio em razão de débitos sobre os quais recai dúvida quanto à certeza e liquidez.
Esse tema é bastante controverso e a mudança legislativa trouxe à tona discussões sobre o rito estabelecido para os processos administrativos, em especial, sobre o critério de desempate. Diante de todo o contexto apresentado, é possível notar que estão pendentes de resposta diversos questionamentos, tais como:
i) O voto de qualidade realmente foi extinto?
ii) A nova sistemática de desempate somente se aplica à discussão sobre créditos tributários “stricto sensu” ou também em debates sobre créditos de modo geral, como, por exemplo, multas aduaneiras?
iii) Considerando que não houve a revogação expressa do disposto no § 9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235/72, deve-se considerar que ocorreu a revogação tácita desta disposição, nos termos do § 1º, do artigo 2º da LINDB?
iv) Caso o entendimento seja pela aplicação específica do novo diploma legal, é possível a existência concomitante de sistemáticas de desempate diversas, ainda que para aplicação em hipóteses diferentes?
v) Os dois tipos de desempate poderão ser utilizados concomitantemente em um mesmo julgamento, dependendo do ponto controvertido a ser analisado? Haverá violação ao princípio da isonomia?
vi) Em caso de declaração de inconstitucionalidade do artigo 19-E da Lei nº 10.522/02, haverá a repristinação[1] da lei anterior?
Como se verifica, a mudança trazida pela legislação gera insegurança jurídica ao processo administrativo e a presente publicação não tem a intenção de responder a todas as questões abertas sobre o caso, mas, sim, compartilhar o tema apontando que o Supremo Tribunal Federal deverá se manifestar e fixar posicionamento definitivo.
O fato é que a discussão está longe de acabar, mas é preciso reconhecer que houve uma mudança histórica na tratativa dada ao instituto. Seguiremos acompanhando os rumos que esta discussão tomará para mantê-los informados.
A equipe DJA está à disposição para esclarecer dúvidas sobre o tema.
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[1] Repristinação é o instituto pelo qual uma lei revogada volta a ter vigência, depois que a lei que a revogou (chamada de lei revogadora) também é revogada.