STJ afasta cobrança de demurrage por retenção da Receita Federal: precedente ganha força em meio à greve de servidores

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A importação de mercadorias depende do transporte internacional e, por vezes, na via marítima, o deslocamento do país de origem até o destino envolve o acondicionamento das mercadorias em uma a unidade de carga (= contêiner). Nesses casos, além da formalização do contrato de transporte com a emissão do conhecimento de transporte (“BL ou Bill of Lading”), são usualmente estabelecidas condições para que o importador devolva o contêiner, inclusive o prazo para que isso ocorra.  

Com a assinatura de “Termos de Responsabilidade” é normalmente estabelecido que o contêiner deve ser devolvido nas condições em que foi recebido até a data convencionada e, caso isso não aconteça adequadamente, dá direito ao armador (ou transportador) realizar a cobrança de demurrage (ou sobreestadia de contêiner). Ou seja, quando há atraso na devolução da unidade de carga, cabe o ressarcimento pelo tempo que o contêiner permaneceu em posse do importador além do prazo estabelecido. 

Por sua vez, sob a perspectiva do importador, a operação internacional precisa ser planejada adequadamente para controlar prazos, evitar custos e otimizar suas operações. Dentre as atividades realizadas na importação, a mercadoria recebida no Brasil deve ser submetida ao despacho aduaneiro de importação – procedimento para verificação dos dados declarados em relação à mercadoria importada – perante a Alfândega da Receita Federal. Na prática, as mercadorias são parametrizadas e fiscalizadas pela Autoridade, o que pode impactar o prazo acordado pelo importador para devolução da unidade de carga. 

A cobrança de demurrage é um assunto bastante discutido no judiciário e há farta jurisprudência no sentido de que a cobrança é legítima. Por sua vez, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) trouxe um posicionamento diferente ao proferir decisão no Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n° 2479015 (2023/0366339-0) e analisar a seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nos autos do processo nº 1017296-83.2020.8.26.0562: 

 “Ação de cobrança julgada procedente – Transporte internacional – Devolução intempestiva de container – Cobrança de sobreestadia – Nulidade da sentença não verificada – Presença dos requisitos do art. 489 do CPC/2015 – Prova documental suficiente para análise segura das questões debatidas nos autos – Cerceamento de defesa inocorrente – Aptidão da exordial reconhecida – Aplicação do art. 53, inciso III, alínea “d”, do CPC – Incompetência territorial inocorrente – Autora que atuou como transportadora marítima e ré como consignatária das cargas – Legitimidade ativa e passiva mantidas – Relação de caráter nitidamente comercial – Inaplicabilidade do CDC – Conhecimento marítimo emitido em nome da ré  Sobrestadia, todavia, indevida em decorrência da retenção dos contêineres pela Receita Federal.  Ação improcedente. Recurso provido.” 

 

A 4ª Turma do STJ, confirmando o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, afastou a cobrança de demurrage contra um importador, ao reconhecer que a retenção dos contêineres ocorreu por ato da Receita Federal, afastando a responsabilidade do consignatário da carga. 

A discussão teve origem em uma ação de cobrança de demurrage movida por uma empresa de navegação contra um importador, buscando o pagamento de aproximadamente US$ 410 mil (mais de R$ 2 milhões) sob alegação de que os contêineres não haviam sido devolvidos dentro do prazo estipulado em contrato. 

No entanto, a empresa importadora comprovou que a devolução dos equipamentos não ocorreu tempestivamente, porque os contêineres permaneceram sob custódia da Receita Federal, em razão do controle e fiscalização aduaneira. Ao analisar a situação, o Tribunal de Justiça entendeu pela inexistência de culpa da empresa importadora, reconhecendo que a cobrança era indevida — entendimento esse que foi mantido pelo STJ, tendo sido apontado que o importador teria tentado liberar os contêineres na esfera judicial com a impetração de Mandado de Segurança, sem êxito, o que representaria ausência de responsabilidade por força maior.   

Segundo a decisão, “a autoridade alfandegária pode as vezes reter as mercadorias para análise e isso faz com que o container fique retido e sua devolução ultrapasse o prazo ajustado, o que não implica em carrear ao importador, consignatário ou ao proprietário do navio, a responsabilidade pelas estadias que ultrapassem o prazo contratual” 

E, considerando que a Receita Federal é quem faz a escolha para fiscalizar as mercadorias importadas, o Tribunal entendeu que essa escolha não pode gerar despesas ao consignatário. 

Vejamos que a situação é bastante controversa: em uma relação entre particulares –transportador e importador -, há ações realizadas pela Autoridade Aduaneira que podem mudar as condições negociadas e causar prejuízos diretos (no caso da demurrage, prejuízos financeiros ao importador e de disponibilidade ao transportador).  

Para esse contexto, a decisão do Tribunal de Justiça aponta que “essa questão de retenção e cobrança de demurrage deve ser objeto de ampla discussão e acertamento entre a entidade alfandegária e os agentes envolvidos na operação de importação e ou exportação, porque a retenção afasta a cobrança”. 

Esse julgamento abre um caminho jurídico relevante para que empresas importadoras possam contestar as cobranças de demurrage que decorram de fatores alheios à sua vontade, como retenções indevidas ou prolongadas por parte da autoridade aduaneira – o que não era comum nas decisões judiciais que estabeleciam responsabilidade ao importador e não reconheciam o tempo do despacho aduaneiro como força maior.   

E, ainda que seja uma decisão específica, o julgado se mostra como um precedente importante para a área, especialmente em tempos de instabilidade operacional nos portos e nos órgãos de controle aduaneiro em decorrência de mobilizações, greves, paralisações ou medidas administrativas unilaterais que impactam o tempo para a liberação de mercadorias importadas.  

Em outras palavras, e conforme fundamentação jurídica de ambas as decisões do TJSP e do STJ, em situações nas quais um ato estatal, ainda que lícito, interfira diretamente na execução de um contrato, tornando-o mais oneroso ou impossível de cumprir, é possível afastar a responsabilidade da parte prejudicada, no caso o importador, visando preservar o equilíbrio contratual e proteger os particulares contra efeitos imprevisíveis e incontroláveis decorrentes da atuação do Estado.  

Assim, o precedente firmado no referido julgamento abre espaço para teses defensivas em ações de cobrança de demurrage, bem como para ações regressivas contra o Estado, especialmente diante da atual greve dos auditores da Receita Federal, iniciada em novembro de 2024, que já vem provocando retenções expressivas de mercadorias em terminais alfandegários, com impacto direto sobre as operações de comércio exterior.  

Contudo, importante pontuar que há limites para aplicação desse precedente, considerando que o STJ foi claro ao afirmar que, no caso analisado, a retenção dos contêineres era de conhecimento das partes e já vinha sendo discutida no processo, o que evidencia que o entendimento foi construído com base em um conjunto específico de elementos. Não há que se falar na aplicação desse julgado para qualquer situação e entendemos que o precedente é bastante relevante, mas cada caso deve ser cuidadosamente analisado.   

Poderíamos, por exemplo, considerar que esse posicionamento não seria aplicável em situações em que o atraso decorra de falta de organização interna da empresa, ausência de documentação adequada, culpa exclusiva do importador, ou quando não houver provas suficientes de que a retenção pela Receita Federal foi a causa direta do atraso na devolução dos equipamentos. Assim, a aplicação da tese exige análise técnica e documental individualizada de cada situação.  

Quando o comércio exterior vive impacto direto da paralisação da Receita Federal, esse entendimento ganha força para que os importadores analisem os cenários e custos decorrentes da demora na liberação de mercadorias importadas exclusivamente pela omissão no procedimento aduaneiro. O precedente se mostra importante, mas deve ser manejado com cautela técnica e alinhamento probatório.  

Nosso time está à disposição para esclarecer dúvidas sobre o tema e auxiliar com teses e estratégias jurídicas adequadas ao contexto atual. 

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