por Gabriella dos Santos Freitas
A Medida Provisória da Liberdade Econômica (MPV 881/2019) foi convertida em setembro de 2019 na Lei nº 13.874/19 a qual manteve, por certo, diversas diretrizes e inovações trazidas pela MP. Dentre as mais diversas previsões da referida lei, damos destaque, por justo, à autorização de mudança procedimental no que se refere à manutenção da guarda de documentos, que é obrigação atribuída por lei ao contribuinte.
Especificamente quanto aos documentos tributários, tal previsão é localizada no parágrafo único do artigo 195 do Código Tributário Nacional, o qual se encontra no Capítulo da Lei que estabelece os limites da fiscalização tributária a ser exercida pela Administração Pública, e no artigo 37 da Lei nº 9.430/96.
Já para os documentos aduaneiros, a manutenção em boa guarda e ordem é estabelecida tanto pelo artigo 18-A da Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 680/06, que disciplina o despacho aduaneiro de importação, quanto pelo artigo 18 do Decreto 6.759/09 (Regulamento Aduaneiro). Seguem colacionados abaixo, para melhor visualização, os dispositivos legais mencionados:
CTN
Art. 195. Para os efeitos da legislação tributária, não têm aplicação quaisquer disposições legais excludentes ou limitativas do direito de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais, dos comerciantes industriais ou produtores, ou da obrigação destes de exibi-los.
Parágrafo único. Os livros obrigatórios de escrituração comercial e fiscal e os comprovantes dos lançamentos neles efetuados serão conservados até que ocorra a prescrição dos créditos tributários decorrentes das operações a que se refiram.
LEI Nº 9.430/96
Art. 37. Os comprovantes da escrituração da pessoa jurídica, relativos a fatos que repercutam em lançamentos contábeis de exercícios futuros, serão conservados até que se opere a decadência do direito de a Fazenda Pública constituir os créditos tributários relativos a esses exercícios.
IN RFB Nº 680/06
Art. 18-A. Os originais dos documentos referidos no art. 18 deverão ser mantidos em poder do importador pelo prazo previsto na legislação.
DECRETO Nº 6.759/09
Art. 18. O importador, o exportador ou o adquirente de mercadoria importada por sua conta e ordem têm a obrigação de manter, em boa guarda e ordem, os documentos relativos às transações que realizarem, pelo prazo decadencial estabelecido na legislação tributária a que estão submetidos, e de apresentá-los à fiscalização aduaneira quando exigidos
(…)
Referida mudança de procedimento trazida pela Lei nº 13.874/19, chamada de Lei de Liberdade Econômica, se refere ao direito e à permissão legal para que as empresas deixem de preservar os documentos de forma física, estando autorizada a manutenção dos documentos por meios digitais. É o que dispõe o inciso X do artigo 3º da Lei nº 13.874, que assim prevê:
Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
(…)
X – arquivar qualquer documento por meio de microfilme ou por meio digital, conforme técnica e requisitos estabelecidos em regulamento, hipótese em que se equiparará a documento físico para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato de direito público;
Tal como se percebe da leitura do dispositivo legal ora mencionado e do teor do parágrafo único do artigo 170[1] da Constituição Federal referido no caput que, junto a outros dispositivos legais, fundamenta a própria a , – o arquivamento de documentos por meio de microfilme ou por meio digital constitui, desde a publicação da Lei nº 13.874/09, em direito de toda pessoa, natural ou jurídica e deve se dar conforme técnica e requisitos estabelecidos em regulamento.
Neste contexto e sanando a lacuna legislativa então criada, foi publicado, no último dia 18 de março, o Decreto nº 10.278, que se presta a regulamentar o inciso X do artigo 3º da Lei nº 13.874/09, definindo técnicas e requisitos para a efetivação do direito à digitalização de documentos com a finalidade de que, mesmo em formato digital, estes produzam os mesmos efeitos legais dos documentos originais. O referido Decreto estabelece o alcance dos limites da sua aplicação, conceitua termos específicos necessários para a sua compreensão e plena aplicação e, dentre outras definições, também fixa regras gerais para a digitalização e determina que o procedimento e as tecnologias empregadas para tanto devem assegurar “a integridade e a confiabilidade do documento digitalizado; a rastreabilidade e a auditabilidade dos procedimentos empregados; o emprego dos padrões técnicos de digitalização para garantir a qualidade da imagem, da legibilidade e do uso do documento digitalizado; a confidencialidade, quando aplicável; e a interoperabilidade entre sistemas informatizados”.
Tratando especificamente sobre a digitalização de documentos que envolvam entidades públicas – estando dentre eles, por consequência, os documentos tributários e aduaneiros -, o artigo 5º do Decreto nº 10.278/20 pontua que, nestes casos, o documento deverá ser assinado digitalmente com certificação digital no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), o que seria suficiente para garantir a autoria da digitalização e a integralidade do documento e seus metadados. Estabelece, ainda, que o documento deve seguir os padrões técnicos mínimos previstos no Anexo I do Decreto e, ainda, conter, no mínimo, os metadados especificados no Anexo II. Tais detalhes técnicos urgem ser observados com bastante rigor para que seja assegurado o direito à digitalização.
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O tratado regramento, já vigente desde a sua publicação em 19 de março de 2020, dá robustez e segurança para a adoção da digitalização de documentos tributários. Inclusive, a mudança dos procedimentos já havia sido pontuada pelo Ato Declaratório Interpretativo da Receita Federal nº 4, o qual fornece interpretação ao parágrafo único do artigo 195 do Código Tributário Nacional nos seguintes termos:
Art. 1º Os livros obrigatórios de escrituração comercial e fiscal e os comprovantes de lançamentos neles efetuados podem ser armazenados em meio eletrônico, óptico ou equivalente para fins do disposto no parágrafo único do art. 195 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional (CTN).
Ademais, houve também a comunicação da Coordenação-Geral de Administração Aduaneira IMPORTAÇÃO nº 18/2020, publicada em 24 de março esclarecendo sobre a apresentação dos documentos digitalizados para fins de despacho de importação, nos seguintes termos:
“Esclarecemos que os documentos originais instrutivos do despacho aduaneiro de importação em meio físico (via original do conhecimento de carga, via original da fatura comercial e etc), que forem digitalizados conforme o disposto no Decreto n° 10.278, de 18 de março de 2020, terão os mesmos efeitos legais dos documentos originais, sendo dispensada a sua apresentação em meio físico para fins de despacho de importação.
Cabe ressaltar que o documento digitalizado deverá conter todos os requisitos obrigatórios do documento em meio físico, conforme legislação de regência em vigor.”
Considerando que o despacho de importação se estende até o momento final da possibilidade de revisão aduaneira, conforme disposto no artigo 54[2] do – que é uma prerrogativa da autoridade assegurada pelo Regulamento Aduaneiro, em seu artigo 638[3], de apurar eventuais irregularidade em operações de importação e exportação – percebe-se que a guarda dos documentos aduaneiros para fins de fiscalização também está autorizada pelo meio digital.
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Tal informação, em conjunto com as determinações do Decreto 10.278/19, nos parece assentar um caminho seguro para a alteração de procedimentos de guarda de documentos tanto tributários, como aduaneiros.
Contudo, apesar de entendermos que a possibilidade de guarda e manutenção de documentos pela forma digital é, de fato, uma evolução, as mudanças devem ser adotadas com cautela de forma a considerar as necessidades peculiares de cada empresa e as características técnicas exigidas para a digitalização, podendo ser observado, por exemplo a elaboração de um planejamento que aplique de forma imediata a digitalização de documentos nos termos estabelecidos pelo Decreto nº 10.278/19, estabelecendo um período razoável de guarda de documentos físicos que possa permitir o descarte destes com maior segurança na tentativa de evitar prejuízos que a falta dos documentos possam causar.
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