por Diego Luiz Silva Joaquim e Thaís de Arruda Leite Ribeiro
O Decreto-Lei nº 4.657/1942, que instituiu a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) – anteriormente conhecida como Lei de Introdução ao Direito Civil (LICC) –, trata e disciplina a aplicação das normas jurídicas brasileiras no tempo e no espaço, afetando as disposições de todos os ramos do direito, dentre eles o Aduaneiro e Tributário.
Instituída em 04 de setembro de 1942, pelo presidente Getúlio Vargas, a mencionada lei sofreu diversas alterações no decorrer dos anos, haja vista as leis deverem ser atualizadas para adequarem-se ao desenvolvimento social e às necessidades jurídicas da população brasileira.
A mais recente dessas alterações ocorreu por meio da Lei nº 13.655/2018, que teve como propósito acrescentar à redação original disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e aplicação do direito público. Foram incluídos dez artigos (artigos 20 a 30) na LINDB2 que, em sua maioria, entraram em vigor na data de publicação da lei, dia 26 de abril de 2018.
Ocorre que referidas disposições ainda possuíam lacunas quanto a sua aplicação, tendo, inclusive, tal questão sido alvo de julgamentos1 polêmicos realizados no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), nos quais os Conselheiros discordaram sobre a aplicação do novo artigo 24 da LINDB ao processo administrativo fiscal.
Referido dispositivo estabelece que a revisão de jurisprudência majoritária na esfera judicial ou administrativa deve levar em conta as orientações gerais da época de sua aplicação, impedindo que mudanças posteriores alterem atos passados (ou constituídos). Entretanto, de acordo com o entendimento proferido em alguns julgados do CARF, tal artigo não se aplicaria ao lançamento fiscal, eis que este ato possui regramento específico no artigo 100 do Código Tributário Nacional3 e exigira lei complementar para ser modificado.
Neste sentido, mostrou-se necessária a regulamentação de tais artigos, o que ocorreu com a edição do Decreto nº 9.830/2019, em 10 de junho de 2019, com o propósito específico de regulamentar os artigos 20 a 30 da LINDB trazendo esclarecimentos quanto à motivação das decisões, o regime de transição, a interpretação de normas sobre gestão pública, compensação, responsabilização de agentes públicos, segurança jurídica na aplicação das normas, entre outros.
Neste escopo, pretendemos apresentar nosso entendimento sobre a aplicação e os impactos da LINDB e da regulamentação dada pelo Decreto nº 9.830/2019 ao processo administrativo fiscal, aplicável às discussões administrativas tributárias e aduaneiras.
O processo administrativo fiscal em âmbito federal foi instituído e é regido pelas disposições do Decreto nº 70.235/1972, pelo qual são estabelecidas as regras para a determinação e exigência dos créditos tributários e, subsidiariamente, pela Lei nº 9.784/99.
Em que pese as determinações trazidas pela LINDB e sua regulamentação, a segurança jurídica do contribuinte é constitucionalmente garantida pelo artigo 5º, XXXVI4 e a Administração Pública deve obediência aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, nos termos do artigo 37 da Carta Magna
Tais determinações são espelhadas pela legislação que regulamenta o processo administrativo. A título exemplificativo, o artigo 2º da Lei nº 9.784/99 assim dispõe: “A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”. Já em seu parágrafo único há a previsão de que: “nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: (…) XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”.
Pois bem. Podemos iniciar nossos comentários pontuando que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que tem por objetivo amparar as legislações vigentes, não haveria que ser regulamentada – ora, não deveríamos interpretar a norma que foi instituída para guiar o regramento jurídico. Contudo, há que se reforçar que as alterações e regulamentação da LINDB surgiram tão somente para reforçar e corporificar os princípios e valores já preexistentes na legislação pátria acerca do processo administrativo fiscal.
Com foco nas questões tributárias e aduaneiras, vê-se que a LINDB e seu Regulamento possuem dispositivos que fazem referência ao processo administrativo fiscal. Comentaremos a seguir os dispositivos que eventualmente poderão refletir nas decisões proferidas em processos administrativos de forma ampla:
Inicialmente, destaca-se que o artigo 205 evidencia a impossibilidade de um julgamento administrativo ser feito com base em “valores jurídicos abstratos” de modo que é exigido da Autoridade Fiscal explicitar a sua motivação nas manifestações proferidas em atos e decisões na esfera administrativa, demonstrando a adequação da medida imposta no caso concreto, com base nos princípios de adequação, proporcionalidade e razoabilidade. É, portanto, dever funcional do julgador administrativo motivar sua decisão indicando as normas, interpretação, jurisprudência ou doutrina utilizadas como fundamento para o resultado proferido, apresentando, portanto, a “congruência entre as normas e os fatos que a embasaram”.
Significa dizer, nesse sentido, que a decisão administrativa jamais poderá ser feita sem que haja a completa apresentação dos fundamentos de méritos e jurídicos que respaldaram o entendimento proferido. Ao tratar dos “valores jurídicos abstratos”, o Decreto nº 9.830/19 os conceitua como “aqueles previstos em normas jurídicas com alto grau de indeterminação e abstração”. Deste modo, pautar decisão nesse conceito exigirá do julgador a motivação adequada ao caso com a indicação das consequências práticas da decisão.
Ora, a falta de motivação nos termos da LINDB e do regulamento do Decreto nº 9.830/2019 apontaria à nulidade da decisão pelo evidente descumprimento legal.
Já em relação ao artigo 216, há inovação quando este dispõe que a Autoridade, ao proferir decisão que invalide ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, deverá indicar as consequências jurídicas e administrativas de suas decisões para o contribuinte, limitando-se aos fatos e fundamentos de mérito e jurídicos “que se espera do decisor no exercício diligente de sua atuação” – nesse ponto, podemos pontuar que a legislação trabalha com a expectativa do contribuinte quanto à atuação do julgador o que, ao nosso ver, pode gerar questionamentos.
Ainda, existe a previsão de modulação dos efeitos, por meio da qual poderão ser limitados os efeitos das declarações administrativas, seja restrição relativa à questão temporal ou à abrangência da matéria tratada.
No que se refere ao artigo 237, este determina que a decisão administrativa que estabelecer nova interpretação sobre norma de conteúdo indeterminado que imponha novo dever ou condicionamento de direito deve prever “regimes de transição” – períodos para que o contribuinte possa se adequar e cumprir de maneira eficiente e sem prejuízo os novos parâmetros a ele impostos.
O artigo 248, por sua vez, propiciou grande inovação no instituto da segurança jurídica incidente no processo administrativo fiscal, isso pois ratificou os institutos do ato jurídico perfeito e do direito adquirido, previstos no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, ao dispor que estaria vedada à Autoridade Fiscal a declaração de invalidade de situações plenamente constituídas de acordo com as orientações gerais da época em razão de posterior alteração no entendimento dominante. Nesse sentido, verifica-se a imposição do dever de uniformizar e unificar a jurisprudência administrativa, a fim de assegurar a segurança jurídica aos contribuintes.
Não somente isso, nos parece que o artigo 24 permite a uniformização da jurisprudência administrativa impedindo que a revisão de entendimento com base em nova legislação invalide o entendimento consolidado em situações já constituídas de modo a garantir segurança ao contribuinte.
Os artigos 26, 27, 28 e 29 preveem, de maneira geral, a possiblidade da celebração de compromisso para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público; imposição de compensação por benefícios indevidos; a responsabilidade pessoal do agente público em caso de dolo ou erro grosseiro; e, a permissão de consulta pública para a edição de atos normativos pela autoridade administrativa.
E, por fim, o artigo 309 reforça o instituto da segurança jurídica, destacando-se o dever da autoridade em atuar de modo a solidificar tal instituto na aplicação das normas, inclusive, na utilização de súmulas administrativas e soluções de consulta. Esse artigo nos parece bastante importante ao avaliarmos não ser incomum a divulgação de soluções de consulta que geram controvérsias jurídicas, quando comparadas à legislação vigente.
Nesse sentido, o artigo 2210 do Decreto nº 9.830/2019, que regulamenta os novos artigos inseridos na LINDB, demonstra a criação de um instrumento que poderá ser utilizado para unificar a jurisprudência administrativa, com efeito vinculante em relação ao órgão a que se destinam, solucionando, assim, as controvérsias instauradas nos processos administrativos. Trata-se de possibilidade de a Autoridade Administrativa, que representa um órgão central da Administração Pública, submeter “controvérsias jurídicas sobre a interpretação de norma, instrução ou orientação de órgão central de sistema” à Advocacia-Geral da União. Tal submissão deverá estar instruída com as posições adotadas pelo órgão jurídico central, pelo órgão divergente e outros que possam ter se pronunciado sobre a temática, para que a Advocacia-Geral possa analisar e se manifestar a fim de resolver a controvérsia posta.
A fim de se garantir a observância de tais instrumentos, os órgãos da administração deverão manter atualizados os seus sítios eletrônicos, que ficarão disponíveis de forma transparente para consulta pelos contribuintes.
Diante do aqui exposto, espera-se que as alterações promovidas pela LINDB garantam, de fato, a segurança jurídica que pauta o ordenamento jurídico brasileiro e tenham impacto positivo no processo administrativo fiscal. Como mencionamos, as normas aqui tratadas foram instituídas com o objetivo de reforçar e corporificar princípios e valores já existentes na legislação pátria, a fim de diminuir ou cessar as discricionariedades praticadas pelas Autoridades Fiscais com transparência e estímulo das atividades produtivas e comerciais através da garantia da segurança jurídica para todos os envolvidos.
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Legendas:
1 Acórdão nº 1401-003.041 proferido nos autos do processo nº 13502.720411/2017-62 em 11/12/2018; Acórdão nº 1302-003.160 proferido nos autos do processo nº 16682.722573/2016-71 em 17/10/2018; e Acórdão nº 1401-002.992 proferido nos autos do processo nº 165612.720065/2013-82 em 2011/2018, entre outros.
2 LINDB, art. 24: “A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.”
3 Código Tributário Nacional, art. 100: “São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos: I – os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas; II – as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei atribua eficácia normativa; III – as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas; IV – os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Parágrafo único. A observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo.”
4 Constituição Federal, artigo 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
5 Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
6 Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
7 Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos
8 Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.
9 Art. 30. As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas.
Parágrafo único. Os instrumentos previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão.
10 Art. 22. A autoridade que representa órgão central de sistema poderá editar orientações normativas ou enunciados que vincularão os órgãos setoriais e seccionais.
§ 1º As controvérsias jurídicas sobre a interpretação de norma, instrução ou orientação de órgão central de sistema poderão ser submetidas à Advocacia-Geral da União.
§ 2º A submissão à Advocacia-Geral da União de que trata o § 1º será instruída com a posição do órgão jurídico do órgão central de sistema, do órgão jurídico que divergiu e dos outros órgãos que se pronunciaram sobre o caso.