por Thaís de Arruda Leite Ribeiro
É conhecida entre as empresas que atuam no comércio exterior a discussão judicial acerca da ilegalidade da inclusão da despesa com capatazia no valor aduaneiro (base de cálculo dos tributos na importação) das mercadorias.
Este litígio vem ocupando o Judiciário brasileiro há anos. Em síntese, a tese dos contribuintes defende que a Instrução Normativa SRF nº 327/2003 violou o princípio constitucional da legalidade tributária, o Artigo VII do Acordo de Valoração Aduaneira (AVA-GATT) e o próprio Regulamento Aduaneiro brasileiro (Decreto nº 6.759/2009), ao determinar a inclusão da referida despesa no valor aduaneiro, extrapolando sua competência de regulamentação.
Ocorre que, no dia 03/06/2019, essa questão foi afetada e submetida a julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, regulamentado pelos artigos 1.036 e seguintes do Código de Processo Civil. Tal rito consiste na escolha de alguns poucos Recursos Representativos de Controvérsia (RRC) que serão encaminhados para julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça, suspendendo-se o andamento de demais processos – em qualquer grau de jurisdição – que versem sobre a mesma matéria, até que a Corte Superior fixe o seu entendimento sobre o assunto. Findo o julgamento, o entendimento fixado afetará e será aplicado aos processos até então suspensos, a fim de uniformizar os julgamentos nos tribunais.
Dentro da sistemática apresentada, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça foi o órgão designado para julgar a questão, tendo sido escolhidos como representativos da controvérsia os Recursos Especiais nº 1.799.306/RS, nº 1.799.308/SC e nº 1.799.309/PR, todos originários do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Vale ressaltar, inclusive, que neste Tribunal Regional foi editada, em 05/09/2016, a Súmula nº 92, favorável à tese defendida pelos contribuintes, dispondo que: “o custo dos serviços de capatazia não integra o ‘valor aduaneiro’ para fins de composição da base de cálculo do imposto de importação”.
A afetação do tema da capatazia ocorreu em razão da existência de pelo menos 100 (cem) recursos e 307 (trezentos e sete) decisões monocráticas proferidas sobre o assunto, segundo informações apuradas pela Comissão Gestora de Precedentes do STJ(1), suprindo, assim, o requisito legal de multiplicidade de recursos especiais com fundamento em idêntica questão de direito.
Destaca-se que, em decorrência disso, foi determinada a suspensão de todos os processos que tratem da temática e que estejam pendentes de julgamento em âmbito nacional, os quais deverão ser retomados somente quando da publicação do acórdão paradigma, momento em que aplicar-se-á a tese então firmada pelo tribunal superior, conforme prevê o inciso §1º do artigo 1.036 c/c 1.040 do Código de Processo Civil.
Convém mencionar que os precedentes das Seções da Corte Superior demonstram que há posicionamento no sentido de que “as despesas ocorridas dentro do porto, com a capatazia (art. 4º, § 3º, da IN SRF 327/2003), não integram a base de cálculo do Imposto de Importação, uma vez que vão além dos limites impostos pelo Decreto 6.759/2009”(2), bem como de que “a Instrução Normativa 327/03 da SRF, ao permitir, em seu artigo 4º, § 3º, que se computem os gastos com descarga da mercadoria no território nacional, no valor aduaneiro, desrespeita os limites impostos pelo Acordo de Valoração Aduaneira e pelo Decreto 6.759/09, tendo em vista que a realização de tais procedimentos de movimentação de mercadorias ocorre apenas após a chegada da embarcação, ou seja, após a sua chegada ao porto alfandegado”(3).
Inclusive, este entendimento tem orientado as recentes decisões da Primeira Seção do STJ, que julgará o tema do recurso repetitivo. Dentre os acórdãos podemos citar o REsp 1.804656/RS, de relatoria do Min. Herman Benjamin, publicado em 17/06/2019 e o AgInt no AREsp 1.133857/RS, de relatoria do Min. Napoleão Nunes Maia Filho, publicado em 11/10/2018. Destaca-se, ainda, que há decisões monocráticas favoráveis à tese dos contribuintes proferidas pelo Ministro Relator Gurgel de Faria, designado para julgar os recursos repetitivos do tema, tais como o AREsp 1.281.830/RS, publicado em 23/08/2018 e o REsp 1.736.253/CE, publicado em 17/05/2018.
Por outro lado, a União Federal, através da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, mantém a sua defesa pelo reconhecimento da legalidade da referida cobrança, utilizando-se dos seguintes fundamentos: (i) a suposta faculdade dos Estados Membros do AVA de incluir ou excluir, do valor aduaneiro, os gastos com carregamento, descarregamento e manuseio, associados ao transporte das mercadorias importadas até o local de destino da importação; e (ii) a previsão de impacto, no prazo de 05 (cinco) anos, de aproximadamente R$ 12 bilhões(4) ao Erário Federal, apenas no que tange à cobrança dos tributos de maior relevância nas operações de importação, quais sejam o Importo de Importação (II) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).
Tais alegações mostram-se plenamente descabidas, a uma porque o AVA limita a inclusão ao valor aduaneiro das despesas incorridas até a chegada do navio ao local do desembaraço das mercadorias, a duas, porque não deve recair sobre os contribuintes o ônus da ilegalidade da cobrança instituída pela IN SRF nº 327/2003 somente com o fito de resguardar o erário da União Federal.
Caso o entendimento que atualmente vem se consolidando nos tributais seja alterado durante este julgamento, os contribuintes continuarão a realizar o recolhimento dos tributos que incidem na operação importação calculados sobre o valor aduaneiro acrescido da despesa de capatazia – o que entendemos ser ilegal –, sendo que a cobrança por parte da União passará a ser realizada com respaldo tanto na legislação vigente, quando em decisão judicial de uma Corte Superior.
Na hipótese de o julgamento do tema 1.014 pelo STJ declarar totalmente ilegal a cobrança realizada pela União Federal, os contribuintes que recorreram ao judiciário poderão, após o trânsito em julgado de sua ação judicial – ou seja, quando não forem cabíveis mais recursos no processo -, proceder com a compensação ou restituição dos valores recolhidos indevidamente a maior nos últimos 05 (cinco) anos a contar do ajuizamento da ação sobre o tema. Este é um cenário possível se considerarmos que o Código de Processo Civil dispõe que os tribunais devem uniformizar a sua jurisprudência e mantê-la estável, assim, o entendimento já firmado no STJ deve ser mantido com o julgamento mencionado.
Considerando a atual situação jurídica do tema, todo importador que almeja recuperar os tributos recolhidos a partir do valor aduaneiro – com a capatazia incluída na base de cálculo – deve ajuizar a respectiva ação judicial para que seja atingido pelos efeitos da decisão a ser proferida pelo Superior Tribunal de Justiça. Já em relação àqueles importadores que oportunamente ajuizaram ação, estes devem acompanhar e aguardar a solução da demanda, e, caso o STJ mantenha a decisão favorável aos contribuintes, poderão gozar da restituição ou compensação dos valores em âmbito administrativo perante a Receita Federal do Brasil após o trânsito em julgado da ação.
(1) Fonte: Notícia “Primeira Seção vai discutir inclusão de serviços de capatazia na composição do valor aduaneiro”, disponibilizada no portal eletrônico do Superior Tribunal de Justiça, assim endereçada (voltar para a leitura)
(2) AgInt no REsp. 1.693.873/PE, Rel. Min. Sérgio Kukina, publicado em 28/06/2018; REsp. 1.645.852/SC, Rel. Min. Herman Benjamin, publicado em 09/10/2017 (voltar para a leitura)
(3) REsp 1.239.625/SC, Rel. Min. Benedito Gonçalves, publicado em 04/11/2014 (voltar para a leitura)
(4) Fonte: ProAfR no REsp nº 1.799.306/ RS (2019/0009507-7), de Relatoria do Min. Gurgel de Faria, disponibilizada em 03/06/2019. (voltar para a leitura)