Por Bruno Felipe Ferreira
O ano de 2020 será lembrado na história por causa da pandemia causada pelo Covid-19, também conhecido como coronavírus. A doença teve origem na China no final de 2019 e devido à sua fácil transmissão, ligada ao efeito da globalização, atravessou continentes e logo se tornou o tema central de discussões pelo mundo. Os efeitos desta pandemia, foram muito além da esfera da saúde, alcançando todos os demais setores sociais, inclusive as questões legais e contratuais. Com isso em mente, o presente artigo busca analisar, sob um panorama geral, os reflexos desta pandemia sobre os contratos e as relações contratuais.
Segundo Maria Helena Diniz, “contrato é o acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial”[1].
Por definição, as relações contratuais integram a sociedade, pois expressam a necessidade de regularização das pretensões, obrigações e vontades entre partes, sejam em situações corriqueiras e simples do dia a dia, como em um contrato de compra e venda ou, uma situação com maior complexidade, como é o caso de cisão ou incorporação de uma empresa. Tamanha a relevância de estabelecer condições para as relações entre as partes, que o tema possui capítulo próprio no Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406/2002), a partir do Título V que trata “Dos Contratos em Geral”.
Ocorre que a propagação da Covid-19 e as medidas que foram adotadas para a contenção pelos Governos causaram consequências diretas às relações contratuais, vez que, em alguns casos, o cumprimento das obrigações e manutenção das condições previamente estabelecidas tornaram-se difíceis ou até impossíveis. A título de exemplo, com as determinações de fechamento de áreas tidas como não essenciais pelo governo brasileiro, os contratos de fornecimento, aluguel ou mesmo os de prestação de serviços passaram a ter ameaças ao seu adimplemento.
Assim, o primeiro reflexo da pandemia sobre as relações contratuais foi justamente a criação de um cenário que dificulta o adimplemento de certas obrigações. Ora, imagine-se, por exemplo, uma empresa que atua como trading e celebrou contrato para importação de mercadorias com cláusulas estabelecendo o prazo para a operação e multa em caso de descumprimento ou atraso, imaginando ainda que as mercadorias seriam insumos essenciais para o processo de produção (industrialização) do adquirente. E, em razão da pandemia causada pelo coronavírus, o exportador não pôde enviar os itens dentro do prazo firmado devido a uma imposição legal em seu país que determinou a suspensão de toda sua atividade, culminando no atraso da entrega das mercadorias. É evidente que a paralisação de atividades do fornecedor, por consequência, impactará o adquirente na expectativa de recebimento de suas mercadorias, do mesmo modo que fará o importador descumprir a programação definida em contrato.
O cenário apresentado acima, embora fictício, não é absurdo. Atrasos ou descumprimento de obrigações pode ser realidade enfrentada por várias empresas ao redor do mundo. Além disso, a hipótese narrada é apenas uma das variadas situações que a pandemia pode causar nas relações contratuais existentes no comércio internacional de mercadorias.
Com isso, um segundo reflexo da pandemia, foi um número crescente de demandas no judiciário buscando revisões contratuais, justamente por empresas que, diante o cenário agora vivenciado, encontraram dificuldade em adimplir com suas obrigações. É importante reiterar que os acordos celebrados previamente à pandemia, estavam sob uma realidade socioeconômica absolutamente distinta daquela vivenciada durante a crise.
O direito brasileiro, no que tange aos contratos, rege-se pelos Princípios da Intervenção Mínima e da Excepcionalidade da Revisão contratual, presentes no parágrafo único do artigo 421 do Código Civil, que versa:
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Grifa-se).
Logo, o Estado preza por não intervir na vontade dos pactuantes, desde que os acordos não violem o interesse social. A função social do contrato, que o artigo acima menciona, é um princípio que garante ao Estado o poder de intervir nas relações privadas para limitar a autonomia das vontades e impedir que o contrato viole o interesse social.
Contudo, existem mecanismos criados pelo próprio Estado para a manutenção das relações contratuais, elegendo hipóteses que permitem reajustes, a fim de tornar obrigações desproporcionais, possíveis de serem adimplidas.
Uma destas hipóteses é a chamada Teoria da Imprevisão, ou Princípio da Revisão Contratual, entabulada no artigo 317 do Código Civil, que assim dispõe:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Quando as circunstâncias no momento da execução do contrato, por motivos imprevisíveis, tornam a prestação de uma das partes manifestamente desproporcional, é possível que haja correção da relação contratual utilizando-se da teoria da imprevisão. Neste mesmo sentido, Carlos Roberto Gonçalves conceitua que “A teoria da imprevisão consiste, portanto, na possibilidade de desfazimento ou revisão forçada do contrato quando, por eventos imprevisíveis e extraordinários, a prestação de uma das partes tornar-se exageradamente onerosa”[2]. Em outras palavras, referida teoria permite seja restabelecido o equilíbrio contratual que se traduz como uma situação de paridade entre a prestação e a contraprestação.
Analisando as decisões do judiciário, podemos observar casos em que se têm entendido pela revisão, a fim de possibilitar o referido equilíbrio contratual, como, por exemplo, os julgados abaixo:
EMENTA: LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE RESCISÃO DE CONTRATO DE LOCAÇÃO CUMULADA COM CONSIGNAÇÃO DE VALORES. PLEITO DE TUTELA ANTECIPADA VOLTADO À REDUÇÃO DOS VALORES LOCATIVOS EM RAZÃO DE ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA. CONSTATAÇÃO DE QUE SE ENCONTRA INVIABILIZADA A UTILIZAÇÃO DO IMÓVEL PARA OS FINS A QUE SE DESTINA, IMPOSSIBILITANDO O DESFRUTE DO PRÓPRIO OBJETO DA LOCAÇÃO. PRESENÇA DOS REQUISITOS LEGAIS RECONHECIDA, A JUSTIFICAR O DEFERIMENTO DA TUTELA DE URGÊNCIA. FIXAÇÃO DE NOVOS VALORES LOCATÍCIOS. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Houve o reconhecimento do estado de calamidade pública e é notório que, em razão da adoção de medidas restritivas de emergência, voltadas ao enfrentamento da pandemia da covid-19, em especial o isolamento social, geraram a impossibilidade de utilização do imóvel objeto da locação e inviabilizaram o exercício da atividade da locatária. 2. É inegável que o fato provocou o desequilíbrio no relacionamento das partes, tornando necessária a pronta atuação jurisdicional, para assegurar resultado efetivo. 3. Assim, estando presentes os requisitos legais, provisoriamente, determina-se a redução do aluguel referente a março de 2020 a dois terços, e dos aluguéis referente aos meses seguintes, até a cessação da impossibilidade de utilização do bem, a 50% do valor contratual. (TJ-SP-AI: 2079620320208260000 SP 2079620-32.2020.8.26.0000, Relator: Antonio Rigolin, Data de Julgamento: 01/06/2020, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 01/06/2020) (Grifa-se)
EMENDA: Agravo de Instrumento. Contrato de prestação de serviços de energia elétrica com previsão de cobrança de montante fixo mínimo. Efeitos econômicos do Covid-19 e do decreto estadual nº 64.881/2020; Agravante que teve sua atividade empresarial prejudicada e requer a cobrança, em sede temporária, apenas dos valores correspondentes ao efetivo consumo de energia elétrica. Previsão contratual. Perigo de dano irreversível com a manutenção das cobranças das faturas no montante mínimo fixado. Efeitos da tutela de urgência que não são irreversíveis em face da agravada, ressalvada a possibilidade de averiguação de eventuais frutos civis no curso do processo. Necessária readequação temporária das condições dispostas no contrato a fim de preservar seu equilíbrio e a continuidade futura da atividade empresarial da agravante. Reforma da decisão de primeiro grau que indeferiu a tutela de urgência. Recurso parcialmente provido. ( TJ-SP-AI: 2092297-94.2020.8.26.0000, Relator: Roberto Marc Cracken, Data de Julgamento: 02/06/2020, 22ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 02/06/2020) (Grifa-se)
Outras hipóteses legais de revisão contratual, são o caso fortuito e a força maior, disciplinados no artigo 393 do Código Civil pelos seguintes termos: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”, o parágrafo único do mesmo artigo define que o “caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir” e o artigo 422, por sua vez, pondera que: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé“.
Podemos, então, entender que o caso fortuito e a força maior são acontecimentos futuros e imprevisíveis, alheios às vontades das partes com potencial para lhes causar prejuízo e, por isso, permitem segurança à parte que inadimplir o contrato, para não responder pelos prejuízos causados.
Inclusive, a doutrina conceitua caso fortuito como “a situação que decorre de fato alheio à vontade da parte, mas proveniente de fatos humanos”[3]. A força maior, por sua vez, é entendida pela jurisprudência, como o poder ou razão mais forte, inevitável e resultante de um fato da natureza que, por sua influência, impeça a realização de obrigação contratual
O judiciário brasileiro já reconheceu a situação causada pelo coronavírus como caso fortuito ou força maior, promovendo reajustes em cláusulas contratuais a fim de reestabelecer o equilíbrio das obrigações, conforme o julgado abaixo:
EMENTA: RECURSO – AGRAVO DE INSTRUMENTO – CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE ENERGIA ELÉTRICA – AÇÃO DE REVISÃO DE CONTRATO – TUTELA DE URGÊNCIA – PANDEMIA DE COVID-19. Insurgência contra decisão que deferiu a tutela de urgência para determinar que a requerida (agravante) proceda a cobrança da energia consumida pela requerente (agravada), afastando a forma de pagamento por demanda contratada (“take or pay”) originalmente pactuada, em razão dos efeitos da crise oriunda da pandemia de Covid-19 na atividade econômica da agravada. Alegação da agravante de que o contrato exclui os fatos aduzidos pela agravada como sendo caso fortuito ou força maior não demonstrada. A crise gerada pela pandemia do novo coronavírus configura-se como caso fortuito, ou força maior, por ser um evento imprevisível e não relacionado aos riscos inerentes à atividade empresarial da agravada, cujos efeitos não se pode evitar ou impedir. Probabilidade do direito invocado e risco de dano iminente demonstrados pela recorrida para a concessão da liminar pelo juízo de origem. Evento imprevisto e excepcional que possibilita a revisão temporário do contrato para restabelecer o equilíbrio e a paridade entre os contratantes, conforme prevê o próprio contrato. Exegese dos artigos 317, 393 e 421 do Código Civil. Risco de dano inverso à agravante não demonstrado, devido a sua especialização no setor de venda de energia elétrica. Decisão mantida. Recurso de Agravo de instrumento não provido. (TJ-SP-AI: 20990177720208260000 SP 2099017-77.2020.8.26.2020, Relator: Marcondes D’Angelo, Data de Julgamento: 03/06/2020, 25ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 03/06/2020) (Grifa-se).
Ademais, outro reflexo nas relações contratuais é a possibilidade de suspensão de multas contratuais pelo descumprimento de obrigações, quando verificado que o inadimplemento decorre da situação de pandemia causada pelo coronavírus. Este reflexo auxilia na segurança jurídica e respeita a função social do contrato.
Entretanto, ainda que haja hipóteses legais que viabilizem pedidos de revisão contratual com base na Teoria da Imprevisão, caso fortuito ou força maior, o Direito brasileiro preza pela intervenção mínima e excepcionalidade da revisão contratual, sendo possível encontrar julgados que rejeitam pedidos de revisão, mormente quando não comprovado o dano ocasionado pela pandemia ou a impossibilidade de cumprimento da obrigação, como por exemplo, o julgado abaixo:
EMENDA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL C/C PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA. EMPRESA TÊXTIL QUE ALEGA CRISE FINANCEIRA DADA A DESCONTINUIDADE DE ATIVIDADES NESSE PERÍODO DE PANDEMIA RELATIVA À COVID-19. TUTELA PROVISÓRIA. PEDIDO DE SUSTAÇÃO DE PROTESTO. AUSENTES OS REQUISITOS LEGAIS AUTORIZADORES DA CONCESSÃO DA TUTELA, PROBABILIDADE DO DIREITO ALEGADO NÃO DEMONSTRADA. INEXISTÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO TENDO COMO CAUSA DIRETA A PANDEMIA OCASIONADA PELO VÍRUS SARS-COV-2. (TJ-SP-AI. º 2090679-17.2020.8.26.0000. Relator: Edgard Rosa, Data de Julgamento: 13/05/2020, 22ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 13/05/2020)
É importante observar que o pleito de revisão contratual judicialmente não pode estar pautado apenas na alegação de dano e/ou prejuízo em decorrência da pandemia, mas é importante que haja evidente demonstração do referido prejuízo ou perigo do dano, além da demonstração da impossibilidade de cumprimento da obrigação, conforme o caso.
É inegável que o instituto em análise, qual seja o contrato, é de suma importância na manutenção da sociedade por regular as relações entre indivíduos, das mais simples às mais complexas. Sem dúvidas, a pandemia causada pelo coronavírus afetou as relações contratuais, devido às ações tomadas pelos Governos para enfrentar a propagação da doença que acabaram por impossibilitar o cumprimento do objeto de muitos contratos.
No entanto, ainda que a legislação brasileira preze pela intervenção mínima do Estado nas relações contratuais, é possível identificar mecanismos legais que permitem revisões de cláusulas a fim de permitir a manutenção do equilíbrio contratual, desde que seja devidamente comprovado o dano, risco ou impossibilidade de cumprimento da obrigação por caso fortuito, força maior ou fato imprevisível.
Pelo até então exposto, e sem pretensão de exaurir o tema, entendemos que a legislação dá margem para discussão judicial dos prejuízos em decorrência da pandemia causada pelo coronavírus, mas é importante que os próprios contratantes busquem avaliar as definições acordadas e negociá-las, quando possível, extrajudicialmente e de forma amigável, buscando equilíbrio e paridade nas obrigações.
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[1] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito civil brasileiro. Vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2008. P. 30.
[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Vol. 3, 9ª Ed..São Paulo: Saraiva, 2012. P.53
[3] VENOSA, Sílvio de Salvo. DIreito Civil – Vol. II – Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 9ª Ed. São Paulo: Atlas, 2009.